Além da flagrante violação a um direito estabelecido (que colocou em risco a vida desta criança), no curso das audiências ela foi alvo de verdadeira tortura por parte da juíza Joana Ribeiro e da promotora Mirela Dutra Alberton, que fizeram de tudo para coagi-la e à sua mãe a não interromper a gravidez. Neste afã, inclusive, a menina foi separada de sua família e internada de forma compulsória em um abrigo. No curso de um interrogatório, a magistrada chegou a indagar à criança se ela já havia “escolhido o nome do bebê”, e se o pai da criança, isto é, o abusador, “concordaria em enviá-la para a adoção”. Consta, nos autos, que a juíza nomeou um defensor para a função de “curador do feto”, que, como se vê, recebeu mais proteção que a própria vítima.
Este modus operandi odioso, que beira o sadismo, não é exceção, mas a regra nas entranhas do sistema de justiça – melhor seria dizer, injustiça – brasileiro, verdadeira máquina de moer gente pobre, e que, quanto às mulheres do povo, ultrapassa o cúmulo do absurdo e de violência. É evidente que uma jovem nascida em berço de ouro, ou mesmo em uma família remediada, jamais seria submetida a esse ritual medieval, simplesmente porque, neste caso, ela não precisaria recorrer ao judiciário para assegurar o aborto legal. Que o dinheiro compra, de fato, este direito é flagrante atraso de nossa sociedade, como na maioria dos países oprimidos, manifestação da feudalidade subjacente e da pendência da revolução democrática que varra todo os anacronismos que vitimam nosso povo.
Para além da indignação, devemos nos perguntar o que essa avalanche de ataques aos direitos das mulheres - dentre as quais se destaca a recente revogação, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, do direito ao aborto livre neste país – nos esclarece sobre a realidade das massas na atual época de crise geral e aguda decomposição do imperialismo. Seriam casos isolados e pontuais de “derrotas táticas”, como quer a interpretação liberal-reformista, ou, pelo contrário, expressão necessária do processo de reacionarização da democracia burguesa, insolúveis, portanto, nos seus próprios marcos?
Há um século, quando do triunfo da Revolução Proletária na Rússia, primeiro Estado do mundo a assegurar a plena igualdade de direitos entre mulheres e homens, o grande Lenin dizia que “em todos os países civilizados, mesmo nos mais avançados, é tal a situação das mulheres que, com razão, são consideradas escravas domésticas. Em nenhum dos estados capitalistas, nem mesmo na mais livre das repúblicas, as mulheres gozam de plena igualdade de direitos”. (Discurso no Primeiro Congresso Pan-Russo das Operárias, novembro de 1918, grifo nosso).
Ou seja, a mesma burguesia “democrática” e “liberal” que vitupera sobre as liberdades individuais é, no mínimo, inconsequente, e no máximo abertamente hipócrita, quando se trata da situação concreta das amplas massas trabalhadoras, nas quais se insere a esmagadora maioria das mulheres. Ao contrário do que pregam estes filisteus e seus sequazes oportunistas, no capitalismo não reina a extensão gradativa dos direitos. Marx já falava, no seu tempo, da tendência “tirânica do capital”, isto é, a sua sede implacável por sobretrabalho, que só pode ser freada pela resistência ativa do proletariado*, tendência que se exacerbou na época do domínio do capital monopolista, o imperialismo, que se caracteriza pela busca do lucro máximo. Assim que, sobretudo em épocas de crise, é uma necessidade dos Estados reacionários impor sobre as massas populares a retirada dos mínimos direitos conquistados a duras penas pelas gerações passadas. Como diz o Presidente Gonzalo, em períodos como esses os direitos se perdem, mas menos se perderão quanto mais a classe e as massas lutem. O trabalho doméstico feminino não pago é decisivo para o rebaixamento geral dos salários, e essa dupla exploração das mulheres integradas na produção, isto é, a metade da classe sustenta-se em uma série de preconceitos sobre o papel da mulher na sociedade e numa visão dela como “cidadão de segunda categoria”. Portanto, o “gradualismo reformista” e suas ilusões constitucionais-eleitorais não passam de areias lançadas aos olhos do povo. Somente a revolução proletária poderá estender mesmo os direitos democráticos burgueses elementares à maioria da sociedade, e, por decorrência, à maioria das mulheres. Sem o triunfo desta revolução, não se pode quebrar o ciclo vicioso.
Por isso não devemos nos iludir com as instâncias deste Estado reacionário, suas forças auxiliares nem com a farsa eleitoral. Sob todos os governos desta republiqueta de bananas, desde os “social-democratas” de Lula e Dilma até o ultrarreacionário capitão do mato Bolsonaro, as mulheres seguiram vitimadas não só pela tutela oficial sobre os seus corpos, como pelo genocídio institucionalizado que assassina a elas e aos seus familiares na cidade e no campo; pela carestia de vida que empurra milhões destas mulheres para a prostituição e as condições de existência mais degradantes; pelo sucateamento dos já precários serviços públicos de saúde, educação e assistência, tão bonitos na “Constituição Cidadã”, que as torna escravas “do lar”, as únicas responsáveis pelo cuidado das crianças, idosos e enfermos.
Diante disso, convocamos as mulheres do povo a se rebelarem! Nossa tarefa é por abaixo esta ordem social que mantém as mulheres na prostituição e na escravidão doméstica e assalariada. Isto não significa que as mulheres devam abdicar da luta, imediata, por todos os seus direitos, em particular, nosso direito a viver com dignidade, de interromper uma gravidez indesejada, enfim, a decidir sobre nosso próprio corpo. Contudo, devemos entender que a única forma de garantir plenamente estas reivindicações é através da nossa participação ativa na Revolução de Nova Democracia ininterrupta ao Socialismo em nosso país, que forma parte inseparável da Revolução Proletária em nível mundial. De fato, a incorporação das mulheres trabalhadoras ao processo revolucionário é condição indispensável não só para a sua própria emancipação, como para o triunfo desta revolução.
Nota
* “Nas tentativas para reduzir a jornada de trabalho à sua antiga duração racional, ou, onde não podem arrancar uma fixação legal da jornada normal de trabalho, nas tentativas para contrabalançar o trabalho excessivo por meio de um aumento de salário, aumento que não basta esteja em proporção com o sobretrabalho que os exaure, e que deve, sim, estar numa proporção maior, os operários não fazem mais que cumprir um dever para com eles mesmos e à sua raça. Limitam-se a refrear as usurpações tirânicas do capital. O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições etc., está toda ela absorvida para o trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia. E, no entanto, toda a história da moderna indústria demonstra que o capital, se não se lhe põe um freio, lutará sempre, implacavelmente e sem contemplações, para conduzir toda a classe operária a este nível de extrema degradação”. (K. Marx, “Salário, preço e lucro”. Grifo nosso). E, às mulheres trabalhadoras, que arcam, ademais, com o peso da servidão doméstica, é retirada de modo ainda mais cruel a possibilidade de dispor de tempo livre para intervir na política, nas artes, para exercitar-se, enfim, na sociedade em geral.
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