30/10/2023

Morte a Barbie e ao Feminismo Burguês


A cena do presidente da Mattel abrindo o pregão da bolsa de valores de Nova York sob uma chuva de confetes cor-de-rosa é emblemática para demonstrar do que se trata o recém lançado filme da Barbie: uma grande peça de propaganda reacionária, não só da empresa que produz a boneca, que teve um aumento de 18% (1 bilhão de dólares) do valor de suas ações desde o lançamento do filme, como também de todo um conjunto de ideias burguesas apodrecidas a respeito da questão feminina.

Buscando fazer com que sua visão de mundo chegue o mais longe possível a burguesia não economizou no marketing, milhões de dólares foram gastos desde o anúncio da estreia até agora para tornar, cada vez mais difícil, andar pelas cidades sem se deparar com uma peça promocional do filme; os outdoors, as redes sociais, a televisão, e até mesmo as roupas que as pessoas usam no dia a dia se tornaram uma grande vitrine de divulgação da obra, investimento tal que terá ainda maior retorno.

Outra parte importante da propaganda do longa é a grande divulgação elogiosa, que este vem recebendo da parte das feministas burguesas. Estas têm tratado o filme como o mais moderno manifesto de combate ao patriarcado. Pessoas que até pouco tempo atrás rejeitavam a Barbie por se tratar de mais um instrumento de imposição de padrões opressivos de feminilidade, hoje se vestem de rosa e defendem a boneca como o maior símbolo de “empoderamento” feminino.

Tergiversando sobre o caráter de classe da questão, o feminismo burguês e pequeno-burguês não conseguem fazer uma análise completa, ficando restritos apenas àquilo que a obra tem a dizer sobre si mesma. Segundo essa lógica, bastaria o filme se declarar como uma peça progressista e de combate ao patriarcado para de fato sê-lo. Porém, como a luta de classes se manifesta na cultura, obviamente há interesses por trás de produzir filmes como esse, e logo, para descobrir o caráter de uma obra devemos nos perguntar a que classe ela serve e a visão de mundo de que classe ela difunde.

Se não nos deixamos levar como boiada atrás da propaganda e divulgação do filme e partimos da posição das classes populares, logo vemos que no caso do novo filme da Barbie é a concepção de mundo da burguesia decadente que está sendo difundida, e não a dos trabalhadores explorados e cada vez submetidos às condições mais precarizadas de trabalho e de vida.

O enredo do filme quer mostrar o caminho percorrido por uma Barbie, desde sua vida sempre perfeita no mundo das Barbies, a Barbielândia, até o mundo real, onde ela se depara com uma série de contradições que são novas para ela e que acabarão por se manifestar em seu mundo de fantasia.

Desde o início, os produtores do filme tentam usar a Barbielândia como uma espécie de representação invertida sobre sua visão do que é a sociedade. Logo, analisando o que é e como funciona essa terra ficcional podemos ter uma ideia sobre a concepção de mundo que eles têm sobre a nossa própria realidade. Isto é, a visão de que a sociedade se divide em gêneros e não em classes. Na Barbielândia não há divisão de classes, a única distinção social que pode ser encontrada é entre as mulheres, as Barbies, que detém os cargos de poder e os homens, os kens, que apresentam um papel secundário, existindo basicamente em função da existência das mulheres. Sendo justamente nessa inversão da posição social de homens e mulheres que supostamente residiria a ironia do filme, mas sem abrir mão da necessidade de um homem reafirmando o valor das mulheres.

Essa ideia de uma divisão da sociedade baseada nos sexos e não nas classes é típica do feminismo burguês e suas derivações pós-modernas, que expressa a ideia reacionária de oposição entre homens e mulheres, sem tomar a classe a que pertencem. Colocam lado a lado mulheres trabalhadoras exploradas e mulheres empresárias exploradoras, numa tentativa de conciliação entre classes antagônicas tendo como base o sexo. Essa concepção não passa de uma arma ideológica da burguesia no seio do movimento feminino, que busca dividir homens e mulheres para que estes não lutem juntos contra o sistema de opressão e exploração do capital. Mas no mundo da Barbie não há classes, é uma espécie de matriarcado em que todas as mulheres são profissionalmente bem sucedidas, sejam elas patrões ou trabalhadoras. Com os homens há diferenças, mas a função social deles é adorá-las. Uma espécie de mundo feminista perfeito, que chega às raias de uma fantasia ridícula.

Em certo momento do filme, a Barbie decide ir ao mundo “real” e o ken vai atrás, e pasmem, o mundo real é a Califórnia como tradicionalmente é representada em todos os filmes clichês norteamericanos, e não o Estados Unidos profundo, das rebeliões antirracistas e dos sem casa pós-crise de 2008. Nesse mundo “real” descobrem o machismo e o patriarcado e, maravilhados com a descoberta de um mundo onde os homens mandam, os Kens decidem instalar o patriarcado na Barbielândia, isso com o apoio das próprias Barbies, que recebem o novo sistema de braços abertos. Mais uma vez a narrativa do filme expressa a visão do feminismo burguês sobre o que é e como surgiu o patriarcado em nossa sociedade. A opressão feminina como fruto da vontade consciente dos homens de subjugarem às mulheres e não consequência direta das relações econômicas decorrentes do surgimento da propriedade privada e da sociedade de classes.

A solução que o filme tenta dar para essa nova situação da opressão das mulheres é ainda mais idealista e reacionária; a solução para opressão é que as mulheres se conscientizem sobre sua própria situação e que, uma vez estando todas as mulheres socialmente conscientes o que restaria fazer é travar a luta no âmbito do Velho Estado para derrubar as leis reacionárias e instalar novas leis progressistas, para fazer com que assim a sociedade seja transformada e a opressão da mulher se torne algo do passado. Essa ideia inverte a realidade, colocando-a como reflexo das leis e não as leis como reflexo jurídico da forma concreta que uma sociedade se acha organizada. A revolução da Barbie é uma nova constituinte no capitólio da Barbielândia, o retorno da presidente e a democracia com ampla representatividade feminina. Ou seja, tudo que a própria história já demonstrou totalmente falho para pôr fim à opressão feminina é apresentado como solução, e que o caminho para isso é a tomada de consciência individual de cada Barbie por meio da conscientização feminista, enquanto provocam brigas e ciúmes em seus respectivos parceiros Ken. Assim, mesmo quando colocam a questão da luta por direitos fazem de forma burguesa, apoiando nos próprios preconceitos contra as mulheres, como manipuladoras.

Tendo tudo isso em vista não é nehuma surpresa que a forma na qual a sociedade se organiza ao fim do filme, após toda a ladainha sobre igualdade entre homens e mulheres, sobre papéis de gênero etc., não passe de uma repetição da mesma forma na qual ela era organizada no começo do filme, salvo algumas alterações insignificantes; os papéis que os gêneros desempenham na sociedade se mantêm inalterado e as mulheres continuam a reproduzir todos os esteriótipos burgueses de aparência e comportamento, só que novamente numa sociedade matriarcal.

O filme deixa muito claro que qualquer crítica que tente analisar o problema da opressão feminina sem ter como ponto de partida a propriedade privada dos meios de produção e a luta de classes, não pode ir mais além da defesa pura e simples do que há de mais reacionário na sociedade. A burguesia, representada no filme pelos diretores da Mattel, não passa de um antagonista cômico que, vendo que seus lucros não estão ameaçados por todo o palavrório bonito de “Barbies normais” termina o filme como mais um aliado. A conclusão para eles é: se podemos lucrar com Barbies feministas, façamos os mais diversificados modelos. Isto é, “seremos feministas” se pudermos lucrar com isso. Deixa bem evidente a mensagem do filme: o imperialismo pode aceitar as diferenças nomeadas por ‘diversidade’, incorporá-las e lucrar com elas. Desde que não ameasse as bases de sustentação do capitalismo é bem vinda a diversidade e a crítica, pois sempre podem servir a criar novas necessidades e fetiches por mercadorias.

Enquanto isso, no mundo real de fato, onde a imensa maioria das massas trabalhadoras sobrevive, fora das telas de cinema, não há nenhum glamour, mas a exploração brutal de bilhões de mulheres e homens que trabalham em condições precárias, por exemplo, nas fábricas da Mattel na Ásia, denunciadas por violarem direitos trabalhistas elementares

Talvez a única serventia desse filme seja mostrar de forma escancarada que na luta contra a opressão feminina, muito diferente do que defendem as feministas burguesas, nem toda a crítica é válida, muito pelo contrário, pode ser incorporada e servir de apoio a toda essa velha ordem.

A Grande Revolução Socialista de Outubro na Rússia, em 1917, já fez na prática crítica contundente ao capitalismo e ao patriarcado, e a Grande Revolução Cultural Proletária na China aprofundou-a. Devemo-nos conscientizar de que estamos atrasadas e o que corresponde é levar tal crítica às últimas consequências, travar uma guerra contra toda a exploração e opressão que pesa sobre a classe e especialmente sobre as mulheres trabalhadoras.

Declarar guerra ao feminismo burguês que com sua defesa de “representatividade” como principal arma de luta pela libertação feminina não passa de um engodo reformista, facilmente assimilado pelo sistema capitalista, que inclusive passa a lucrar mais com isso, já que o empoderamento para essa gente é via de regra o consumo.

Para o capital monopolista imperialista não importa qual será a aparência física das bonecas, contanto que isso os traga lucro. Nesse quesito mais uma vez o feminismo burguês se mostra impregnado pelo idealismo reacionário ao defender que basta transformar as representações culturais para que se altere também a realidade, e joga como linha auxiliar na manutenção da opressão.

Ao tentar reinventar a boneca, o novo filme da Barbie não passa de mais um produto e mais uma arma de disputa política e ideológica no âmbito da luta de classes entre burguesia e proletariado. A burguesia tenta transformar as críticas que existem ao próprio sistema de opressão e exploração que ela produz em mais uma mercadoria com a qual ela pode lucrar. As críticas ao papel histórico da Barbie como representante de um padrão inalcançável de feminilidade, às empresas que lucram com uma falsa ideia de diversidade, etc., são esterilizadas e se tornam mais um produto que é consumido avidamente pelos oportunistas que creem que isso é um avanço, que qualquer crítica é válida e que a “reforma” da Barbie se trata de mais um passo no caminho da igualdade de direitos. Da nossa parte nem um crédito a essa obra. Não queremos reformar a Barbie e nem esse podre sistema de opressão e exploração do qual ela é fruto, queremos por tudo isso abaixo. Para isso o que corresponde é uma crítica e ação contundentes contra o imperialismo, a reação e o feminismo burguês.

 

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Notas:

1 - https://www.prnewswire.com/news-releases/fresh-investigation-reveals-deterioration-of-mattels-labor-conditions-181379421.html

https://chinalaborwatch.org/deterioration-of-mattels-labor-conditions-an-investigation-of-four-factories/

https://www.comunicarseweb.com/biblioteca/china-labor-watch-denuncia-mattel-por-condiciones-laborales-ilegales 

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