Publicamos a seguir importante relato sobre o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht escrito pela bolchevique Elisabeta Yakovlena Drabkina. A tradução do texto foi retirada do site do MEPR - Movimento Estudantil Popular Revolucionário.
O assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht narrado pela bolchevique Elisabeta Yakovlevna Drabkina
Elisabeta Yakovlevna Drabkina, filha da bolchevique Feodosia Drabkin
(“Natasha”) e de Iakov Drabkin – que, sob o pseudônimo “Sergei Gusev”,
logo seria Presidente do Comitê Militar Revolucionário do Soviete de
Petrogrado – teve uma vida intimamente ligada ao Partido Bolchevique e à
Revolução Russa.
Na sua infância, Drabkina acompanhava sua mãe nas viagens a Helsinque
para comprar armas para os bolcheviques. Quando tinha cinco anos, a
repressão que se seguiu à Revolução de 1905 obrigou seus pais a passar à
clandestinidade. Ela não voltaria a vê-los até a Revolução de Outubro
de 1917.
Na sua adolescência, incorporou-se ao Partido Bolchevique, foi
voluntária dos Guardas Vermelhos e participou da tomada do Palácio de
Inverno. Aos 17 anos, passou a servir de secretária de Yakov Sverdlov no
Instituto Smolny. Nos anos seguintes, casou-se com o também bolchevique
Aleksander Solomonovich Iosilevich, de quem logo se divorciaria.
Suas obras, algumas publicadas postumamente, enfocam os eventos e as
figuras que definiram sua vida, principalmente sua experiência
revolucionária, os revolucionários com os quais conviveu na militância e
a Revolução de Outubro, até aquele 26 de outubro, 7 de novembro de
1917, em que Lênin, no Smolny, diria: “Camaradas: a revolução operária e camponesa, cuja necessidade proclamaram sempre os bolcheviques, triunfou…”.
Na sua obra “Pão duro e preto”, Elisabeta Drabkina, que
representa o papel ativo e protagonista da mulher russa na luta
revolucionária que deu lugar ao primeiro Estado operário da história, a
Rússia Soviética, logo, União Soviética, descreve sua vida anterior à
revolução, a militância clandestina de seus pais e, finalmente, a sua
própria; suas experiências junto a Lênin, ou Nadejda Krupskaia, e sua
participação pessoal nos acontecimentos principais do triunfo da classe
operária e camponesa russa na noite de 6-7 de novembro de 1917 (25-26 do
calendário juliano oriental), ademais da posterior guerra civil contra o
terror branco e os estados imperialistas que o apoiaram, que
terminaria, como continuação do espírito revolucionário de Outubro, na
vitória do proletariado soviético e o triunfo total da Revolução.
Também conheceria Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, estando em
Berlim naquele funesto dia 15 de janeiro de 1919, em que a burguesia
acabaria com a vida de ambos tentando destruir o movimento operário e
revolucionário alemão.
Reproduzimos a seguir os capítulos em que Feodosia Drabkin descreve a
sua estada na Alemanha e seu contato com os maiores representantes do
movimento espartaquista, além de narrar o covarde assassinato, durante
sua transferência para a prisão, pelos sicários do governo do social
democrata Friedrich Ebert, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Assim,
terminaria Drabkin seu relato:
“Por sobre os telhados pontiagudos de Kitaigorod, despontava o disco
alaranjado da lua. Entre as colunas da Casa dos Sindicatos pendiam,
emoldurados em vermelho e com sinais de luto, os retratos de Karl
Liebknecht e Rosa Luxemburgo, ao pé dos quais estava escrito com grandes
letras: ‘A melhor vingança pela morte de Liebknecht e Luxemburgo é a
vitória do comunismo!’”.
Entrevistas em Berlim
Da estação, nós encaminhamos para a casa
de uma irmã de Kurt, chamada Erna. Kurt sabia que a única filha desta
havia morrido e o marido havia caído em Verdun.
Nas ruas se aglomerava uma grande multidão. Constantemente se ouvia
um ruído estranho. Eram as solas de madeira que golpeavam as lajes dos
pavimento. Um inválido cego, ao qual faltavam as duas pernas, sentado em
um carrinho, arrancava de um acordeão as notas de uma melancólica
canção. Nas paredes das casas havia cartazes afixados nas cores preta,
branca, vermelha e verde. Nas letras grossas repetia-se infinitamente:
“Spartak nos conduz à tumba; a ordem nos dará pão!”; “Ordem ou
bolchevismo!”; “Ordem ou fome!”; “Ordem ou morte!”: “Abaixo Spartak!”;
“Abaixo os bolcheviques!”.
A irmã de Kurt vivia em uma grande casa ladrilhada, habitada por
gente pobre da cidade. No pátio, meninos macilentos e mal vestidos
jogavam. Por uma escada estreita e empinada, com corrimões de ferro,
subimos até o sexto andar. Abriu-nos a porta uma mulher de rosto
emaciado com as mãos cheias de espumas de sabão. Faziam apenas três anos
que os irmãos não se viam, contudo, imediatamente, não se reconheceram.
Segundo conversamos, Kurt preveniu a irmã de que devia apresentar-me
aos vizinhos como sua esposa. Erna me entregou um vestido e roupa de
baixo de sua filha morta e pôs água para esquentar. Enquanto Kurt e eu
nos lavávamos, a sua irmã foi às compras.
Sobre a mesa, apareceu uma pomposa torta de biscoito com frutas
confeitadas, salsichão e chá servido nas taças. Porém, a torta era de
batata gelada; a fruta confeitada, de uma viscosa pasta de amido com
sacarina; o chouriço, de ervilhas e o chá, uma infusão de folhas de
faia. Para comprar tudo aquilo, Erna vendera seu único anel de ouro.
Estávamos tão cansados que dormimos como uma pedra por quase 24
horas. No dia seguinte, Kurt saiu para buscar seus camaradas e eu fiquei
em casa. Chamavam constantemente à porta: eram vizinhas que vinham ver a
“pequena mulher russa”. Conseguimos nos entender de algum modo; elas me
perguntavam e eu perguntava a elas. Qualquer que fosse o tema da
conversa, indubitavelmente ia parar naquilo que mais torturava sua
imaginação: a fome.
Na Rússia, conhecíamos bem o que era a fome. Durante meses inteiros
vivemos com meio pedaço de pão e houve dias em que nem isso recebemos.
Mas, de todo modo, a fome que nós sofríamos era distinta da que me
contavam as mulheres dos operários alemães. Nós passávamos fome por
causa da guerra; eles, pela guerra. Nossa fome era uma desgraça
da qual sempre tivemos a esperança de nos livrar assim que tomássemos o
Poder, tão logo derrotássemos aos brancos e intervencionistas e
puséssemos em marcha a produção. A fome deles era uma fome de
condenados.
Era uma fome calculada, regulamentada pela máquina implacável da
guerra. Havia-se previsto, com muitos anos de antecedência, cada espiga
que devia crescer, cada recém nascido que deveria morrer de fome assim
que viesse ao mundo, cada adolescente que devia chegar à mocidade para
depois virar carne de canhão.
Agora, a máquina militar alemã havia sido derrubada, mas a fome
persistia. A social-democracia empoleirada no poder rechaçou o pão dos
operários russos prostrando-se ante o Presidente dos Estados Unidos. Há
mês e meio que estava atirada aos seus pés e Wilson fazia com a Alemanha
o frio jogo do gato e rato. Até então, não dera nem um grão de víveres.
Em vez de pão, acenava com incontáveis mensagens, nas quais, com
repugnante ostentação e hipocrisia se estendia em considerações sobre o
humanismo e a civilização, exigindo ao mesmo tempo que a Alemanha
acabasse com “Spartak”, estrangulasse os comunistas alemães. Então, os
Estados Unidos dariam pão. O pão seria servido somente sobre o túmulo da
revolução.
Ebert e Scheidemann não desejavam outra coisa. Apontavam à classe
operária alemã a morte pela fome que pairava sobre suas cabeças e
diziam: “Veja! Esta é a tua alternativa: a fome ou a revolução! Se não
queres morrer de fome, acaba com a revolução!”.
No segundo ou terceiro dia após chegarmos, assistimos a uma reunião
sindical dos eletricistas do distrito. A reunião celebrava-se numa
cervejaria, apinhada de gente. Os operários estavam sentados em torno de
mesinhas, bebiam cerveja adulterada, lançavam baforadas de fumo de algo
que queria parecer tabaco. Muitos estavam de pé nos corredores ou
sentados nas janelas. No estrado, sobre a mesa da presidência, se
elevavam encanecidas cabeças dos “sacerdotes sindicais”. Cada um tinha
diante de si uma jarra cheia de cerveja até as bordas.
Começou a reunião. Se concedeu a palavra a um daqueles “sacerdotes”.
Demonstrou suavemente sua discordância com as ações de Wilson e sua viva
indignação contra a atuação dos espartaquistas e propôs que se fizessem
voluntariamente restrições: somente estas poderiam assegurar a vitória
da revolução. Afirmava que era necessário defender a propriedade e o
capitalismo, pois que sem o capitalismo não haveria trabalho nem pão.
Algum dia, quando chegasse a hora, se degolaria ao porco, porém até
então deviam evitar que estirasse a pata, e permanecesse bem cevado,
para que desse mais toucinho.
O discurso do orador foi interrompido por ruídos e gritos que partiam de diferentes lugares.
A atmosfera foi esquentando. Porém, logo os “sacerdotes” da
presidência se sobressaltaram e todos ao mesmo tempo dirigiram os
olhares para a porta de entrada. A sala estremeceu. Nas filas de trás se
ouviram exclamações de saudação. Todos se puseram de pé, muitos tiraram
os bonés e começaram a jogá-los para o alto, gritando: “Viva
Liebknecht!”; “Viva o chefe do proletariado alemão!”.
Liebknecht entrou lentamente na sala. Era um homem de estatura
elevada, grisalho, de rosto magro, olhos profundos e reluzentes que
pareciam iluminar sua face. Nos últimos anos, a vida havia-lhe
apresentado uma cadeia contínua de provas: a frente, o tribunal de
guerra, trabalhos forçados; agora, esforçava-se de modo sobre-humano
para salvar a revolução.
O discurso de Liebknecht foi uma resoluta condenação dos
scheidemannistas, que haviam vendido e traído a revolução, uma
condenação das pessoas flutuantes: aos Kautsky, aos Haase e outros de
seu jaez, cuja traição mascarada era ainda mais perigosa.
Liebknecht disse que, a 9 de novembro, os operários e soldados haviam
tomado o poder, porém perderam-no imediatamente, porque os
scheidemannistas, com a conivência dos “independentes”, débeis de
caráter, foram devolvendo-o parte por parte à oficialidade reacionária.
Exigiu que Hindenburg e os generais do Kaiser, que de fato dirigiam os
Sovietes de Soldados, fossem imediatamente destituídos e presos.
Desmascarou Ebert e Scheidemann e demonstrou que não se ocupavam de
outra coisa senão perseguir “Spartak”, desarmar os operários e armar os
bandos contrarrevolucionários. Citou fatos que testemunhavam com
evidência irrefutável que já se havia criado a guarda branca, que
dispunha de infantaria, cavalaria, artilharia pesada e metralhadoras. Os
regimentos de guardas brancos, acantonados em Berlim e Potsdam, estavam
destinados a aplastar o proletariado revolucionário de Berlim.
– O Governo Ebert-Scheidemann assestou uma punhalada na revolução! –
exclamou Liebknecht. – Se triunfa a contrarrevolução, estes cachorros
sem escrúpulos levarão ao paredão dezenas de milhares de operários. Se o
proletariado tolera que Ebert e Scheidemann sigam mandando, logo virá a
mais negra reação. Ao inferno com estes senhores! Viva a revolução
alemã e mundial!
Desde a presidência, os “sacerdotes” trataram de interromper a
Liebknecht com gritos, mas logo preferiram se calar, ao se darem conta
de que os ânimos do auditório não estavam do seu lado. Parte dos que
enchiam a sala recebeu as palavras de Liebknecht com clamorosos
aplausos, enquanto os demais escutavam-no em meio a um silêncio sombrio,
abatidos pela incontestável verdade de seus argumentos. Ainda que
aqueles honestos proletários berlinenses experimentassem grande confusão
devido aos muitos anos de mentiras scheidemannistas, a intuição de
classe os levava para Liebknecht, para o “Spartak”.
Para que esta tendência interna se convertesse em apoio ativo, real,
faltava tempo. Os scheidemannistas decidiram não dar este tempo ao
proletariado alemão e começaram a buscar pretextos para lançar as massas
às ruas e provocar uma matança sangrenta.
Quando parti de Moscou, o Comitê Central do Konsomol me encarregou de
transmitir aos jovens espartaquistas alemães uma saudação do Primeiro
Congresso da União das Juventudes Comunistas. Agora, eu falava duas ou
três vezes por dia diante dos jovens operários berlinenses.
Eles escutavam-me com viva atenção, faziam-me milhares de perguntas,
ajudavam-me a achar as palavras que faltavam, às vezes estouravam em
gargalhadas ante as inverossímeis descobertas que eu fazia no idioma
alemão.
Depois das reuniões me rodeavam. Todos desejavam reiterar uma e outra
vez as palavras de amizade e fraternidade revolucionária que eu devia
transmitir em seu nome à juventude revolucionária da Rússia Soviética.
Naqueles dias, encontrei-me com Rosa Luxemburgo, “Rosa Vermelha”,
como a chamavam os operários alemães. Através dos camaradas, pediu-me
que fosse vê-la numa casa em Schöneberg. Dificilmente era sua casa;
provavelmente, devia ser de um dos seus amigos.
Cheguei um pouco antes da hora marcada. Rosa não chegara todavia. Eu
folheava um volume de Goethe, quando soou brevemente a campainha, como
se a houvesse tocado um pássaro com suas asas.
Rosa tirou as botinas à entrada e, com o boné e o casaco de peles
vestidos, correu para a casa e me puxou para si. Conhecia-me desde a
minha infância e queria muito à minha mãe. A última vez que nos víramos
foi quando estivemos durante um verão no litoral alemão, há sete anos
atrás. Na estação fazia um tempo claro, o céu era transparente, e desde a
manhã até a noite ficávamos na areia dourada ou colhíamos flores no
campo para formar um herbário.
As recordações daqueles tempos reconfortaram as nossas almas por um
instante. Rosa queria ver-me, sobretudo, para conhecer o máximo possível
da Rússia Soviética, da Revolução Russa. Perguntava-me por Lênin,
interessava-se por sua saúde, assaltava-me com perguntas sobre os dias
de Outubro e das frentes da Guerra Civil. Escutava com o semblante
vivamente interessado e de novo voltava a perguntar.
…Falamos até muito tarde. Antes de terminar, Rosa me disse que sonhava em fazer uma viagem à Rússia Soviética.
-Irei sem falta, irei nos próximos meses. Preciso tanto ver Lênin, falar com ele! – repetia.
Chegou a hora da partida. Despedimo-nos. Rosa me olhou desde a porta, alegre, animada, com seus belos olhos negros.
-Até logo! – disse.
Eu poderia pensar, por acaso, que era a última vez que a via?
A 29 de dezembro, domingo, eram enterrados os marinheiros caídos nas
ruas de Berlim durante o sangrento desarmamento da divisão
revolucionária da Marinha. Era o terceiro enterro das vítimas, em
Berlim, nas sete semanas de revolução. Porém, desta vez, nos caixões
forrados de pano vermelho iam os cadáveres dos que haviam sido
massacrados por ordem do Governo social-democrata.
Era um frio e nublado dia de dezembro. Quando chegamos ao lugar já se
havia concentrado muita gente. Vinham de todas as partes. Chamava
atenção a multidão de bandeiras e cartazes vermelhos.
O cortejo fúnebre se encaminhou a Friedrichshain, o cemitério dos
caídos nas jornadas da revolução de março de 1848. O caminho passava
através dos bairros da burguesia. Sobre as casas ondulavam provocativas
bandeiras pretas, brancas e vermelhas. Os féretros com os cadáveres
foram colocados sobre elevados cadafalsos, puxado por corcéis pretos
cobertos com tecidos fúnebres.
“Abaixo Ebert e Scheidemann!”, – dizia a consigna escrita nas faixas. O mesmo gritavam os que acompanhavam os camaradas caídos.
Nas calçadas se aglomerava o público burguês. Cobria de impropérios e
maldições os que estavam nos ataúdes e seguiam o cortejo. O próprio ar
parecia pesado, a tal ponto estava saturado de ódio.
Aproximava-se o Ano Novo. Ainda que os tempos que corriam fossem
alarmantes, os espartaquistas amigos de Kurt decidiram celebrá-lo
juntos. Organizaram a ceia, cada um levando o que podia: este, algumas
batatas; aquele, uns nabos; outro, um pacote com bolotas de café. Um
camarada conseguiu, até mesmo, uma garrafa de vinho do Mosela.
Bebemos o vinho; demos conta da ceia frugal e a conversa girou em
torno do tema que interessava aos presentes: a sorte da revoluçao alemã.
Entre os reunidos na virada do Ano Novo, se manifestaram profundas
divergências nos problemas da luta prática; muitas coisas não estavam
claras para eles, outras, os confundiam e os levavam ao equívoco. Porém,
unia-lhes o principal: a decisão de lutar até o fim e uma fé
inquebrantável no futuro. Parafraseando as famosas palavras de Lutero,
um dos camaradas disse:
-A Alemanha socialista triunfará! Esta é a minha opinião e não há como ser de outro modo!
Era perto das duas quando bateram à porta de uma maneira combinada:
duas batidas seguidas, a terceira, depois de um intervalo. Entrou um
camarada que eu não conhecia, ao qual todos chamavam de Walter.
-Queridos amigos! – disse. – Na vida do proletariado alemão acaba de
produzir-se um grande acontecimento: no Congresso de partidários do
“Spartak” tomou-se a decisão de criar o Partido Comunista da Alemanha.
Se só estivéssemos ali nós, os jovens, teríamos gritado de
entusiasmo. Porém, havia gente que acabava de sair da sofrida
clandestinidade na época do Kaiser e que sabiam que amanhã iria
desafiá-los uma clandestinidade quiçá ainda mais dura. Deram-se as mãos,
entrelaçando-as sobre a mesa num só aperto. Entoaram A Internacional como
a cantam nos presídios, com a boca fechada, pronunciando as palavras
para dentro. Que força impressionante, quanta ira e esperança havia
naqueles solenes acordes apenas audíveis do hino da classe operária
mundial!
Separamo-nos ao amanhecer. Pela ampla rua deserta corria em nossa
direção um homem que coxeava um pouco. Numa mão, carregava um cubo com
grude, na outra, um rolo de proclamações de cor verde. Corria de uma
casa para outra, com um ágil movimento untava a proclamação com grude e a
colava na parede.
Kurt acendeu a lanterna de bolso e lemos um chamamento da “Liga
Antibolchevique”, dirigido ao povo alemão, na qual se antecipava a
futura voz de Hitler:
“Dormes, bruto!
Desperta!
Desperta, povo alemão!
Compreende o perigo que te ameaça: o bolchevismo!
Todos à luta contra Spartak!
Povo alemão, desperta! ”
“FUI, SOU E SEREI!”
Há uma semana chegáramos a Berlim. Combinamos que, na primeira
oportunidade que se apresentasse, eu iria para Moscou. Enquanto isso,
ajudava Erna: lavava para as casas ricas. Na Alemanha, haviam restado
muitos senhores, de modo que trabalho não faltava.
No sábado, quatro de janeiro, Kurt regressou antes de cair a noite;
trazia os bolsos cheios de folhetos. Era portador de importantes
notícias: o Governo destituíra do cargo de chefe de polícia o
“independente” Eichhorn e designara para o seu lugar o social-democrata
de direita Eugen Ernst.
-Estes senhores decidiram nos fazer guerra. – disse Kurt, reunindo na
escadaria os operários da casa. –Mas, nos veremos cara a cara!… Vamos
mandá-los para o diabo!
No dia seguinte, nossa casa se pôs em movimento cedo, coisa que não
era comum aos domingos. Pelo menos, no terceiro andar se ouviam batidas
de porta e sibilavam as chaleiras onde se fazia café.
A princípio, saíram de nossa casa umas trinta pessoas. Logo, se
juntaram outras. Um inválido do terceiro andar, que havia perdido o
braço direito na guerra, tinha uma bandeira vermelha que havia escondido
depois das jornadas de novembro.
De todas as partes afluíam grupos de pessoas que se dirigiam a Unter
den Linden. Na densa névoa matutina surgiam aqui e ali bandeiras
vermelhas, e ouviam-se gritos: “Abaixo Ebert e Scheidemann!”, “Viva
Liebknecht!”, “Viva Eichhorn!”.
Perto do meio-dia, alguém propôs se dirigir ao palácio do chanceler
do Reich, residência do Governo. No enorme edifício parecia não existir
vida, as janelas tinham fechadas as espessas e escuras cortinas; as
altas portas maciças pareciam fechadas às sete chaves.
Voltamos para Unter den Linden. Os manifestantes continuavam de pé.
Logo, sem saber o que fazer, começaram a dispersar-se. Voltei pra casa
com os vizinhos. Kurt foi buscar os camaradas. Demorou para voltar e
disse que uma parte dos manifestantes ocupara as redações do jornal
social-democrata Vorwärts e de vários jornais burgueses e que combinaram começar a greve geral no dia seguinte.
Naquela noite, pouco se dormiu em nossa casa. Antes do amanhecer, os
operários foram para as suas fábricas. Não se publicou um só jornal
burguês.
Kurt não queria me levar com ele, mas o convenci. Era muito cedo, a
manhã despertava em meio de uma névoa acinzentada. Todavia, estavam
acesos os faróis, projetando sombras difusas.
Na praça situada diante da Chefatura de Polícia se reuniu muita
gente. Havia começado a clarear. A névoa se dissipava. A multidão
crescia. Por todas as ruas adjacentes à praça avançavam coordenada e
incontívelmente negras colunas, sobre as quais ondeavam as bandeiras
vermelhas. Muitos levavam armas. Kurt viu surgir entre a névoa um menino
operário que levava sobre cada ombro um fuzil.
-Camarada, dai-me um! – pediu Kurt.
-Toma!
A praça não podia abrigar todos os que chegavam; as pessoas enchiam
as ruas vizinhas e se apertavam, formando uma massa compacta que se
estendia ao longo de vários quilômetros. Havia se reunido não menos do
que meio milhão de pessoas. Berlim nunca vira uma manifestação tão
potente de proletários revolucionários.
Fazia muito frio. No céu, as nuvens estavam muito baixas. As pessoas
agrupadas e mal abrigadas se moviam sem cessar para combater o frio,
olhando pacientemente o edifício da Chefatura de Polícia. Ali acontecia
uma grande reunião dos “decanos revolucionários”, cujos componentes eram
na sua maioria “independentes”. De vez em quando um dos reunidos saía à
sacada e dizia algo. A multidão transmitia suas palavras: “A reunião
continua”, “se examina a questão”, “de uma hora pra outra se chegará a
um acordo”.
Deste modo, passou uma hora após a outra. A multidão continuava
esperando. Mais uma, duas, três horas. Já escurecia, a névoa fazia-se de
novo mais densa, porém as pessoas permaneciam de pé, tremendo de frio
com finos casacos de pouca valia, feitos na sua maioria de velhos
capotes de soldados. Vieram para vencer ou morrer, e estavam dispostas a
aguardar, enquanto lhe restavam forças, até que a lançassem ao combate.
Na Chefatura de Polícia continuavam reunidos. No fim, apareceu na sacada o orador de turno.
-Camaradas! – gritou. – Concordamos entrar em negociações com o Governo. Vão para casa! Se necessário, os chamaremos!
Pela multidão perpassou um murmúrio de ira e perplexidade: “Como? Que conversações pode haver com Ebert e Scheidemann?”.
-Temos noticias de que o Governo está disposto a fazer concessões de
bom grado e aceita as negociações. – gritou o orador. –Como nós, está
interessado em que não haja derramamento de sangue!
Porém, o orador se equivocava inteiramente. Enquanto 500 mil
berlinenses permaneciam na rua e na Chefatura de Polícia, reuniam-se
incessantemente, no gabinete de Ebert, no palácio do chanceler do Reich,
na Wilhelmstrasse, os líderes do partido social-democrata. Ali, estava
também o social-democrata de direita Gustav Noske, ex-governador de
Kiel.
Os que viram Noske diziam que era um homem atarracado, com umas mãos
enormes que não correspondiam à sua estatura. Nunca intervinha primeiro,
escutava por longo tempo aos demais, voltando-se para o orador com todo
seu corpo. Logo se levantava, apoiando-se na mesa com seus punhos
descomunais e começava a falar sem rodeios, com frases curtas e diretas,
o que Ebert e Scheidemann embelezavam com todo gênero de
artifícios. Assim ocorreu nesta ocasião. A destituição de
Eichhorn foi o primeiro ato da provocação tramada por estes senhores, a
fim de lançar as massas à rua e organizar uma repressão sangrenta. A
provocação funcionara, as massas se lançaram às ruas; chegara a hora da
repressão.
Anos depois, no seu livro de memórias De Kiel a Kapp, Noske
contava: “Alguém me perguntou: Não colocarás as mãos no assunto? Ao que
respondi brevemente: Por que não?! Algum de nós tem que assumir o papel
de cachorro sanguinário!”.
Noske foi designado comandante em chefe das tropas encarregadas da
ordem. Sem perder um minuto, acompanhado de um jovem capitão vestido à
paisana, dirigiu-se ao edifício do Estado-Maior Geral para examinar a
situação com os generais do Kaiser que ali se encontravam e tomar as
medidas necessárias. passada a Wilhelmstrasse toparam na Unter den
Linden com uma patrulha operária; porém, bastou que urdissem uma
patranha inverossímil para que os deixassem passar.
Numa casa do edifício do Estado-Maior estavam reunidos muitos
oficiais e vários generais. Tinham preparada a ordem nomeando o general
Hoffmann chefe das forças punitivas. O aparecimento de Noske e sua
declaração de que a ele tinha sido designado o mando supremo das forças
punitivas foram acolhidos com ruidosas demonstrações de aprovação: os
oficiais e generais do Kaiser haviam aprendido algo nos últimos meses e
se davam perfeitamente conta de que, naquelas condições, Noske era muito
mais útil que Hoffmann.
Naquela reunião, acordou-se transferir o Estado-Maior de Berlim para
Dalem, e concentrar na região de Potsdam as forças de choque para
reprimir a Berlim revolucionária.
Voltamos tarde para casa. Erna preparara uma sopa de nabos.
Depois de comer, sentei-me numa cadeira junto à estufa.
-Em que pensas? – perguntou-me Kurt.
-Em nada…
Sentia calafrios; por minha cabeça passavam ideias incoerentes. Num
estado semiconsciente, vi um grande barco, brilhantemente iluminado, que
navegava rapidamente na noite, por um rio caudaloso. Logo, me dei conta
de que não era um barco, senão o Smolny resplandescente de luzes, tal e
como apareceu nas grandes jornadas de Outubro.
Soou o timbre. Vi um dos camaradas com quem celebráramos o Ano Novo.
Disse-me que não foi a lugar nenhum. Todos os cidadãos soviéticos que se
encontravam em Berlim deviam permanecer em casa; os scheidemannistas
podiam organizar qualquer provocação se caísse nas suas mãos alguém dos
russos.
O camarada propôs a Kurt que fosse com ele. Kurt vestiu-se e tomou o
fuzil que lhe dera, pela manhã, um jovem operário. Uma força incontível
me impulsionava a abraçá-lo e beijá-lo. Permaneci de pé, acariciando a
manga do seu capote até que marchou.
Então começaram para mim tormentosos e duros dias de espera. Kurt não
regressou naquele dia, nem no dia seguinte, nem no outro. Não havia
jornais e as pessoas que iam à cidade traziam os rumores mais
fantásticos e contraditórios.
Na quinta-feira recebemos um breve bilhete de Kurt. Dizia que se encontrava na redação do jornal Vorwärts ocupada
pelos operários revolucionários. O camarada que trouxe o bilhete disse
que Liebknecht falava da manhã à noite nos diversos lugares da cidade.
Rosa também. Os operários haviam conseguido apossar-se de vários
estabelecimentos oficiais e estações. Em distintos confins da cidade se
produziam choques com os partidários do governo.
Na noite de sexta para sábado chegou aos nossos ouvidos um forte
tiroteio. Até então, na cidade havia fogo de fuzilaria, mas agora se
ouviam metralhadoras e artilharia.
No sábado, chamou à nossa porta o inválido do terceiro piso. Disse
que, para os lados de Potsdam, entraram na cidade tropas governistas, à
cabeça das quais ia Noske. Assaltaram o local do jornal Vorwärts.
Esperamos por Kurt o tempo inteiro; durante a noite do sábado até o domingo não pregamos os olhos. Contudo, Kurt não veio.
As tropas do Governo continuaram limpando de insurgentes a cidade.
Segunda-feira, os operários foram desalojados dos seus últimos redutos
fortificados. Após um intervalo de uma semana, saíram os jornais
burgueses e o Vorwärts. Nas primeiras páginas se destacava em
grossos títulos: “A tranquilidade é completa em Berlim”. “A
tranquilidade é completa em Berlim!” – escreve naqueles dias Rosa
Luxemburgo – “A tranquilidade é completa em Berlim! – afirma a imprensa
burguesa triunfante, corroboram Ebert e Noske, repetem os oficiais do
‘exército vitorioso’, aos quais a massa burguesa saúda nas ruas de
Berlim… ‘Spartak’ é o inimigo, e Berlim, o lugar onde nossos oficiais
podem vencer. Noske é o general que sabe obter vitórias onde foi incapaz
de lográ-las o general Ludendorff”.
E, dirigindo aos inimigos do proletariado as últimas palavras que
havia de escrever em sua vida, “Rosa Vermelha” exclamava com ódio:
“A ‘tranquilidade é completa em Berlim!’. Sois uns lacaios obtusos.
Vossa tranquilidade se assenta sobre areia movediça. A Revolução se
alçará de novo amanhã e, ao som de trombetas que os farão tremer,
anunciará: ‘Fui, sou e serei!’”.
“Tristis”
Passaram o sábado e o domingo. Erna e eu permanecemos todo esse tempo
tratando de vencer a emoção, atendendo a cada ruído na escada. Mas Kurt
não vinha.
No domingo decidimos ir ao lugar da onde havia chegado a última notícia dele, a redação de Vorwärts.
As ruas eram um formigueiro de gente domingueira.
Senhoras e senhores ligeiros passeavam, contemplando alegremente as
marcas do recente combate; davam carinhosos golpezinhos na couraça de
aço dos blindados que entraram em Berlim, encabeçando o desfile das
tropas de Noske; deleitavam-se na leitura das consignas que se viam por
todas as partes: “Morte a Liebknecht!”; “Morte a Rosa Luxemburgo!”.
A soldadesca saciada, ébria de sangue, era o herói da jornada. Os
oficiais, cofiando os bigodes à la Kaiser, acolhiam benevolentes os
sorrisos das damas. Os soldados reviravam os sótãos atrás dos operários
escondidos. Quando a caça dava resultado, lançavam o homem golpeado e
sangrento à multidão, e as engomadas damas pisoteavam-no com os altos
tamancos de suas botinas de moda, amarradas com cadarços até os joelhos.
Gelada de espanto, agarrei-me ao braço de Erna. Aquilo me recordava a
repressão contra os homens da Comuna de Paris, que conhecia por minhas
leituras. Estes senhores não haviam lido nem Arnould nem Lissagaray, mas
atuavam exatamente do mesmo modo que os versalheses. Evidentemente,
para ser verdugo burguês, bastava ser simplesmente burguês.
Por fim, conseguimos dominarmos e entrar junto com aquela enfurecida multidão na redação do Vorwärts. Ali,
cheirava a sangue e fumaça de pólvora. À entrada, se viam os restos da
barricada que os operários levantaram com resinas de jornais e rolos de
papel. Os rolos formavam a base da barricada, as resmas estavam
reforçadas com arame e colocadas de maneira a deixar aberturas para as
armas.
Seguimos adiante, esperando e temendo ao mesmo tempo ver alguma coisa
que denotasse a sorte que coubera a Kurt. Por todas as partes, viam-se
poças de sangue, nas paredes havia fragmentos de cérebros humanos. Os
que pereceram ali não haviam morrido em combate, senão, foram
arrematados a coronhadas pelos ferozes mercenários.
Durante cinco dias, cinco terríveis dias, buscamos Kurt por
hospitais, clínicas e depósitos de cadáveres. Tudo estava repleto de
feridos e mortos. Os feridos encontravam-se estirados nos corredores,
uns delirando, outros morrendo. Alguns cadáveres estavam empilhados,
outros, numa massa informe. Ainda depois de mortos, os rostos
conservavam a intensa e desesperada decisão que tiveram no momento do
último combate.
Quarta-feira, 15 de janeiro, no Die Rote Fahne, apareceu um artigo de Liebknecht intitulado: “Apesar de tudo!”. Com imensa emoção lemos suas ardentes palavras:
“…Nosso barco mantém decididamente, e com orgulho, seu rumo para a meta final, até a vitória.
Vivamos ou não nós quando esta vitória se logre, nosso programa
viverá. Abarcará todo o mundo da humanidade liberada, passe o que passe!
As massas proletárias agora adormecidas serão despertas pelo
importante estrondo da derrubada que se aproxima, qual se soassem as
trombetas anunciando o juízo final. Então, ressuscitarão os lutadores
assassinados e exigirão as contas aos malditos assassinos.
Hoje se ouve somente o ruído subterrâneo do vulcão, mas amanhã
vomitará seu fogo e nas torrentes de sua lava ardente enterrará estes
assassinos”.
Na tarde daquele mesmo dia, assassinaram-no. A ele e a Rosa…
Todos sabiam que iriam caçá-los. A burguesia uivava exigindo que se
achasse seu paradeiro, que se lhes prendesse e se lhes fizesse em
pedaços. Scheidemann prometeu 100 mil marcos a quem os apresentasse,
vivos ou mortos. Dois dias antes do assassinato, Vorwärts publicou uns
versos que terminavam com um chamamento aberto ao assassinato de Karl e
Rosa: “Os mortos estão estendidos nas fileiras por centenas; porém, Karl
não figura entre eles! Não estão Rosa e companhia!”.
Ninguém acreditou no que dizia um comunicado governamental publicado
na quinta-feira, no qual se afirmava que Liebknecht morrera numa
tentativa de fuga, e que Rosa tinha sido despedaçada por uma multidão
casualmente reunida. Investigações posteriores evidenciaram que o
comunicado oficial era, do princípio ao fim, uma mentira consciente e
premeditada.
Karl e Rosa foram capturados na sexta-feira, às 9 e meia da noite,
pelos bandidos do regimento social-democrata do Reichstag. Conduziram os
prisioneiros ao hotel “Eden”, situado na parte oeste de Berlim, e
entregaram-nos ao Estado-Maior da Divisão de Cavalaria dos fuzileiros da
guarda, a frente da qual se encontrava o capitão Pabst, braço direito
de Noske.
Karl e Rosa ficaram detidos no “Eden” muito pouco tempo; logo,
comunicaram-lhes que seriam transferidos ao cárcere de Moabit. Primeiro,
levaram Liebknecht. Acompanharam-lhe o capitão Pflugk-Hartnung e o
tenente Vogel, futuro hitlerista.
Quando conduziam Liebknecht para o carro, tal e como havia sido
previamente ordenado por Pabst, se aproximou dele um tal Runge e lhe
assestou várias coronhadas na cabeça. Sangrando, meteram Liebknecht no
carro que se dirigia a Tiergarten. No meio do parque, o carro se deteve
simulando uma avaria. A Liebknecht ordenaram que saísse e marchasse à
frente. Apenas andou uns passos, o tenente Liepmann e o mencionado
Pflugk-Hartnung dispararam-lhe à queima-roupa pelas costas, matando-lhe.
Levaram o corpo de Liebknecht para um posto de socorro urgente situado
perto dali e o entregaram como o cadáver de um ‘desconhecido’”.
Desde a saída de Liebknecht com seus assassinos do hotel “Eden” até a
entrega do cadáver no pronto-socorro transcorreram apenas dez minutos.
Às 23h20 informou-se a Pabst que o assunto estava concluído. Em vinte
minutos Pabst entregou Rosa Luxemburgo a Vogel.
Quando Rosa, a quem conduziam agarrada aos braços do diretor do hotel
e de Vogel, descia a escada, correu ao seu encontro o mencionado Runge e
com a mesma culatra lhe golpeou a cabeça.
Rosa perdeu os sentidos. Arrastaram-na e a jogaram no automóvel.
Assim que o carro se pôs em marcha, Vogel e o tenente Krul dispararam
sobre Rosa. Krull tirou o relógio de pulseira da morta e o meteu no
bolso. O carro se deteve junto ao canal situado entre a ponte Cornelius e
a de Lichtenstein. Colocaram o cadáver de Rosa na calçada, ataram-no
com um arame, colocaram-lhe um peso e o lançaram no canal.
Só foi descoberto vários meses depois.
Na noite de quinta-feira, já muito tarde, ao sair do necrotério da
cidade, ouvimos uns passos que ressoavam na rua deserta. Quando chegou a
nossa altura reconheci um amigo íntimo de Rosa, Leo Joguiches. Falei
com ele. Perguntou com tristeza se não víramos no necrotério o cadáver
de Rosa. Não, ali não estava. Dois meses depois, Leo Joguiches foi
capturado pelos cachorros do bando de Noske e assassinado no cárcere.
Só na sexta-feira pela manhã identificamos Kurt entre uns cadáveres
no necrotério de um hospital em Pankov. Tinha a cabeça destroçada, os
olhos saltados das órbitas, a cara era um enregelado sanguinolento. Se
lhe podia reconhecer somente pelas mãos e pela roupa.
No dia seguinte sepultamos Kurt. Na outra manhã, veio até mim um
camarada. Disse que havia uma ocasião e que podia ir a Moscou com os
colaboradores da Comissão Soviética encarregada de assuntos dos
prisioneiros. Detiveram-se em Berlim após a expulsão de nossa embaixada,
nas vésperas da Revolução de Novembro, e agora regressavam à Rússia
Soviética.
Tonta, despedi-me de Erna, subi ao trem e transcorri todo o caminho;
como que tonta ouvi que nas eleições à Assembleia Constituinte da
Alemanha os social-democratas de direita obtiveram a maioria. Minha boca
tinha gosto de ferrugem, em todas as partes parecia-me haver um intenso
odor de cadáveres e feno.
Numa fria noite de janeiro nosso trem chegou à plataforma da estação
de Moscou. Faziam apenas dois meses e meio que partira dali e me parecia
ter transcorrido uma vida inteira.
Meus acompanhantes se despediram de mim e andei só pelas ruas nevadas
de Moscou. Era difícil andar, estava escorregadio. Devido à inanição,
me davam tonturas.
Perto do Soviet de Moscou havia um carro fechado. À porta do edifício
se abriu e apareceu um homem com casaco de couro. Era Yákov Mijáilovich
Sverdlov. Já subira ao carro quando me aproximei dele. A emoção me
apertava a garganta e não conseguia pronunciar nem uma palavra. olhou-me
e, ao reconhecer-me, disse algo em voz alta; logo, me colocou no carro,
me levou ao Kremlin e me conduziu ao Comando. Ali, ordenou que
imediatamente esquentassem o banho, que jogassem todas minhas vestes ao
fogo e me dessem roupa de soldado vermelho. Disse que logo lhe chamassem
e viria recolher-me para me levar pra casa.
Uma hora depois estava sentada no comando com as mangas da farda
dobradas, porque eram muito grandes. Bebia um chá quente numa jarra de
folha-de-flandres. O comando estava instalado numa casa espaçosa e mal
iluminada. Nos bancos colocados ao longo das paredes estavam sentados
uns jovens soldados vermelhos, que falavam a meia voz, evidentemente
sobre algo relacionado comigo. Ouvi palavras soltas: “De Berlim”, “os
mencheviques venceram ali…”, “o povo vai passar muito mal”.
Descansei. Sentia-me bastante bem e, para não tomar tempo de Sverdlov, fui a pé para casa.
Entardecia. O céu tinha tonalidades verdes e pratas. Detrás dos
telhados vermelhos de Kitaigorod apontava o disco alaranjado. Entre as
colunas da Casa dos Sindicatos pendiam, emoldurados e com marcas de
luto, os retratos de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, ao pé dos quais
estava escrito com grandes letras: “A melhor vingança pela morte de
Liebknecht e Luxemburgo é a vitória do comunismo!”.
No retrato, Karl estava bem mais jovem do que nos últimos meses de
vida. Rosa aparecia tal e como a vi ao me despedir dela em Berlim; era
igualmente terno e penetrante o olhar dos seus belos olhos escuros.
“O homem deve viver como uma vela que arde pelos dois extremos” – gostava de dizer Rosa.
Assim viveram os dois: Rosa e Karl. Que a sua memória perdure eternamente!
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